(Texto de Fábio de Castro, distribuído pela Agência FAPESP) – Seguindo a tendência mundial, o
Brasil tem passado por um processo meteórico de expansão do ensino superior.
Mas a crescente universalização tem um efeito colateral grave: a queda da
qualidade, de acordo com Liz Reisberg, do Boston College (Estados Unidos).
Segundo Reisberg, nesse contexto, a formação de professores qualificados passa
a ser a prioridade número um para países como o Brasil.
Pesquisadora do Centro para
Educação Superior Internacional (CIHE, na sigla em inglês) do Boston College,
Reisberg é considerada uma das principais especialistas em questões
relacionadas à internacionalização, acesso, equidade e qualidade e na reforma
do ensino superior na América Latina. Sua experiência no continente teve início
durante o doutorado, sobre novas estratégias para aprimorar a qualidade do
ensino superior na Argentina.
Consultora de diversas
universidades, governos e agências internacionais, Reisberg foi coautora do
relatório Tendências Globais da Educação Superior: rastreando
uma revolução acadêmica, publicado em 2009 pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Entre os dias 18 e 21 de julho,
Reisberg participou da organização e das atividades da 1ª Escola Zeferino Vaz de
Educação Superior (eZVes),
realizada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O evento reuniu
dirigentes do ensino superior e alguns dos principais especialistas do mundo na
área, com a finalidade de analisar e debater as tendências e desafios desse
setor educacional.
Em São Paulo, Reisberg concedeu a
seguinte entrevista à Agência FAPESP.
Agência FAPESP – O que caracteriza de forma mais marcante as tendências globais do ensino superior?
Agência FAPESP – O que caracteriza de forma mais marcante as tendências globais do ensino superior?
Liz Reisberg – À medida que passamos de uma sociedade de trabalhos manuais para uma sociedade tecnológica, o ensino superior ganhou mais importância e mais responsabilidade em relação à inovação e ao desenvolvimento econômico. Aumentou muito a mobilidade de estudantes e pesquisadores e a cooperação internacional entre as instituições. Mas talvez a característica mais marcante dessas mudanças, especialmente na última década, seja uma tendência à expansão e universalização do ensino superior. Países como Brasil, Índia e China estão no centro das atenções, porque são sociedades que se modernizaram e ganharam muita importância na economia internacional, gerando uma demanda muito grande de mão de obra qualificada. O ensino superior nesses países se tornou uma prioridade urgente e a expansão das universidades nesses lugares tem sido imensa, especialmente no Brasil. Só que essa expansão gerou também um grande problema: inserir mais gente no ensino superior tem um impacto importante nos custos e na qualidade desse ensino.
Agência FAPESP – É possível conciliar expansão
e qualidade?
Liz Reisberg – É muito difícil. Acesso, custo
e qualidade são fatores estreitamente correlacionados, não se pode alterar um
deles sem ocorrer impactos sobre os outros. É preciso encontrar um equilíbrio,
mas isso não tem acontecido. Brasil, Índia e China expandiram muito rapidamente
e a qualidade caiu demais. É muito fácil controlar o equilíbrio entre expansão,
custo e qualidade quando só se tem 5% ou 6% da população com idade
universitária inserida no sistema de ensino superior. Mas quando se está na
situação de grande parte dos países hoje, com 40% ou 50% dos jovens nas
universidades, a dificuldade para encontrar esse equilíbrio se torna um
pesadelo. No Brasil o que se tem feito é expandir, em primeiro lugar, enquanto
a preocupação com a qualidade vem a reboque.
Agência FAPESP – Esse impacto da expansão na
qualidade se deu tanto no campo do ensino como no campo da pesquisa?
Liz Reisberg – Estou me referindo ao lado
educacional. A pesquisa está restrita a um número muito pequeno de
instituições. Apesar da enorme expansão universitária, o Brasil provavelmente
não aumentou seu número de pesquisadores no mesmo ritmo. O país tem um grupo de
elite produzindo pesquisa de classe mundial, um grupo concentrado, e muito
poucas universidades. Mas não acho que a qualidade da pesquisa está afetada
pela expansão. O país precisa ainda aumentar o número de pesquisadores.
Agência FAPESP – Por que a expansão exerce
tanto impacto negativo na qualidade do ensino? Há falta de professores?
Liz Reisberg – É muito mais fácil expandir o
número de estudantes que aumentar o número de professores qualificados. Para
produzir um professor novo, é preciso pelo menos seis anos, normalmente oito
anos, às vezes dez anos. É um processo muito longo. Podemos aumentar muito o
número de estudantes em um ano, com uma decisão política. Acho que por trás do
problema da qualidade – em particular no Brasil, China e Índia – temos um lapso
entre o número crescente de estudantes e o número de professores qualificados.
É um imenso desafio. Vejo o programa Ciência Sem Fronteiras como uma tentativa
de aumentar o número de professores qualificados, mas é preciso mais. A China
está fazendo algo semelhante, mas não na mesma escala, o que é surpreendente, porque
eles precisam ainda mais de professores qualificados.
Agência FAPESP – O que poderia ser modificado
na maneira como são formados os professores?
Liz Reisberg – Acho que há algumas soluções
criativas que o Brasil não está aproveitando. Uma delas é abrir mais espaço
para professores que tenham apenas o mestrado, mas não doutorado, formando
equipes com apenas um professor doutor, que trabalharia como mentor. Esse
professor sênior poderia, ao mesmo tempo, dirigir e avaliar a atuação dos
outros docentes em sua atividade de ensino e ajudá-los a capacitá-los como
pesquisadores. Até onde sei, o Brasil não está usando esse recurso. Além de
enviar gente para fora do país ou para programas de doutoramento, é importante
investir na capacitação dos professores que já têm mestrado, usando a
qualificação dos professores doutores como guia.
Agência FAPESP – É possível elevar a qualidade
do ensino ao nível da pesquisa feita no Brasil?
Liz Reisberg – Sim, contanto que as
prioridades sejam repensadas. Todo sistema de ensino superior tem
pesquisadores, mas não é correto pensar que todos os professores precisam ser
excelentes pesquisadores. Eles precisam ter boas habilidades de pesquisa apenas
para transmitir essas habilidades aos alunos, mas não é todo professor que precisa
necessariamente fazer pesquisa importante. O que precisamos é ter bons
professores. Ter bons professores é mais importante que ter bons pesquisadores.
Agência FAPESP – Por quê?
Liz Reisberg – Um dos problemas que
discutimos no workshop na Unicamp foi que a maior parte das pessoas que vão à
universidade, no Brasil, está apenas em busca de inserção em uma carreira
profissional. Formam-se muito mais profissionais do que pesquisadores. Esses estudantes
precisam de ensino de excelência. Só que no Brasil o sistema recompensa apenas
os bons pesquisadores, mas não recompensa nem incentiva os bons professores. Na
maior parte dos países ocorre o mesmo: os docentes são avaliados pela
quantidade de pesquisa que produzem. Esquecem que a maior parte dos alunos
precisa exatamente de excelência no ensino. Repito: nem todos os professores
precisam ser ótimos pesquisadores. É preciso dar mais ênfase em cultivar a
excelência no ensino. Esse é um novo movimento no mundo, uma tendência.
Agência FAPESP – Para estimular a excelência do
ensino, então, é preciso repensar todo o sistema de ensino superior?
Liz Reisberg – Não necessariamente. Muita
coisa pode ser feita isoladamente. Por exemplo, durante o workshop em Campinas,
o professor Peter Dourmashkin falou sobre a experiência de ensinar Física no
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Eles perceberam que muitos
estudantes no primeiro ano fracassaram, ou simplesmente desistiram da carreira,
alegando dificuldades. Peter e seus colegas descobriram que o problema não era
que a física era muito difícil, mas que estava sendo mal ensinada. Tiveram que
mudar completamente a maneira de ensinar e obtiveram sucesso. Tratava-se de uma
situação pela qual todos já passamos: temos um excelente pesquisador ensinando
ciência, mas talvez ele seja um péssimo professor. Isso desilude muitos
estudantes. No MIT, uma das principais instituições científicas do mundo, eles
admitiram: não estamos fazendo um bom trabalho de ensino. Ensinar, para mim, é
de maneira geral uma atividade criticamente subvalorizada nas universidades,
mas reconhecer o problema já é um grande passo.
Agência FAPESP – A senhora disse que nem todo
professor precisa ser um grande pesquisador. Todas as boas universidades
precisam se dedicar à pesquisa?
Liz Reisberg – Precisamos parar de pensar que
todas as universidades se tornem instituições de excelência em pesquisa e
começar a pensar em um sistema de classe mundial. Precisamos desenhar sistemas
nacionais para abordar uma gama mais ampla de necessidades para a educação
superior. Nem é preciso que o Brasil invista só em universidades. Seria
importante investir também em um nível universitário mais técnico, de curto
prazo. No Brasil, acho, há um grande lapso entre a escola secundária e a
universidade. Se tivéssemos mais desses programas, talvez fosse possível
atenuar essa lacuna e dar a esses jovens as habilidades que eles não tiveram na
escola secundária.
Agência FAPESP – Qual sua opinião sobre o
vestibular como sistema de acesso à universidade?
Liz Reisberg – É problemático, mas não
conheço nenhum país que resolveu isso. O Enem poderia ser uma solução
interessante, mas o problema é que acaba privilegiando os estudantes de escolas
privadas, que têm melhor qualidade. É um padrão de qualidade interessante para
selecionar os alunos, mas gera um problema de equidade. A China tem um exame
nacional com foco no mérito, o que resolve o problema da equidade. Mas a
competição é tão acirrada e o estresse é tão grande – os candidatos chegam a
estudar 13 horas por dia – que o fracasso muitas vezes leva ao suicídio. Não
acho que seja uma boa ideia. É justo em relação ao mérito, mas destrói a saúde
mental das pessoas. É realmente muito difícil pensar em uma alternativa. Gosto
muito do que a Unicamp está fazendo como o ProFis [Programa de Formação
Interdisciplinar Superior].
Agência FAPESP – Por que a senhora admira o
ProFis?
Liz Reisberg – Trata-se de um curso piloto
voltado para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas de
Campinas. Os estudantes são selecionados pelas notas do Enem e recebem uma
visão integrada das várias áreas, por dois anos. Os que obtêm sucesso podem
ingressar na Unicamp sem vestibular. É um experimento muito interessante. É uma
maneira de diminuir a lacuna entre a escola secundária e a universidade também.
Acho que não é perfeito, mas dá mais acesso à oportunidade de entrar uma
universidade de qualidade. É uma alternativa muito inovadora que não requer
diminuição da qualidade.
Agência FAPESP – A privatização, a
terceirização, a cobrança de taxas e mensalidades em universidades públicas
foram consideradas pelo relatório da Unesco como tendências. No Brasil há
grande resistência a isso. Qual sua opinião sobre essa tensão?
Liz Reisberg – É uma questão internacional e
ninguém tem uma resposta ideal para isso também. Achamos que, em longo prazo,
ter um bom sistema de educação superior gratuito não é algo sustentável. É
inviável manter esse sistema para sempre, especialmente com a expansão. No Brasil,
há uma forte cultura contrária à cobrança. A gratuidade é vista como um direito
que não pode ser retirado. Mas não se trata, nesse caso, de um dogma
neoliberal: é uma concepção equivocada afirmar que a universidade tem que ser
gratuita, pelo simples fato de que nada é gratuito. A questão é quem está
pagando. A ideia da gratuidade é uma armadilha. Adoraria que a educação fosse
gratuita, mas isso é insustentável do ponto de vista econômico.
Agência FAPESP – Dos sistemas existentes, qual
poderia ser apontado como modelo?
Liz Reisberg – Como eu disse, nenhum é ideal.
Mas a Austrália tem um sistema do qual eu gosto muito. Os estudantes são
bastante subsidiados, mas pagam algo de acordo com a renda familiar. Ou podem
conseguir um empréstimo e pagar de volta. Mas, diferentemente dos Estados
Unidos – onde todos precisam ressarcir o investimento no final, com juros –, na
Austrália o pagamento é mensal e nunca pode superar 4% da renda do indivíduo.
Agência FAPESP – As universidades têm buscado a
internacionalização. Há algo que pode ser feito para potencializar esse
esforço?
Liz Reisberg – Reconheceu-se que é impossível
hoje viver em um universo restrito ao local e aumentaram muito as cooperações
internacionais e intercâmbio de estudantes e pesquisadores. Uma tendência, a
partir de agora, é investir em experiências internacionais de período mais
curto. Desenvolver programas que possibilitem participações rápidas em
programas no exterior. Pode ser por duas semanas, ou um mês, durante as férias.
Para um estudante norte-americano, por exemplo, há uma grande diferença entre
estudar antropologia em um livro e passar duas semanas no meio da floresta
peruana. É algo que tem um custo, mas não se compara ao dos programas mais
longos. Acho que o Brasil poderia investir mais nessa dimensão da internacionalização.
Agência FAPESP – Com as novas tecnologias o
acesso à informação ficou muito fácil e isso poderia abrir espaço para uma
mudança no conteúdo do que é ensinado na universidade. Essa mudança está
ocorrendo?
Liz Reisberg – Começa a ocorrer, mas está
ainda muito longe do que seria satisfatório. No Brasil, me parece que há uma
ênfase grande demais no conteúdo. O professor quer passar tudo o que sabe sobre
física, psicologia, matemática. É o modelo que fazia sentido há 100 anos. O
professor passava, na classe, essa informação que não podia ser conseguida em
outro lugar. Agora, podemos encontrá-la no Google. As pessoas andam com seus
computadores no bolso. Por que gastar horas de aula com esse tipo de
informação? Seria melhor dedicar esse tempo ao aprimoramento do espírito
crítico, à análise, incentivar criatividade, pensamento, colaboração.
Dependendo da área, calcula-se que pelo menos 20% do que você aprende na
graduação já está obsoleto quando você chega à pós-graduação. Falamos muito
nisso no seminário e aparentemente esse movimento já começou no Brasil.
Agência FAPESP – Sobre a questão da avaliação
da pesquisa na universidade: como encontrar o equilíbrio entre a quantidade de
publicações e a qualidade?
Liz Reisberg – Há uma grande pressão por
publicar em alguns países, incluindo o Brasil. Se só recompensamos as pessoas
pelo número de artigos publicados, estamos estimulando a pesquisa de baixa
qualidade e até mesmo estimulando a fraude dos periódicos que aceitam pagamento
para publicar. Trata-se de uma perversão do sistema, semelhante à questão do
equilíbrio entre ser bom pesquisador e ser bom professor. Precisamos nos
preocupar em que atitude o sistema está recompensando e como essa escolha
influencia a qualidade.
Agência FAPESP – Para melhorar a qualidade da
pesquisa é preciso criar bons mecanismos de avaliação. Como fazer isso?
Liz Reisberg – Se eu tivesse essa resposta, sem dúvida ganharia
o prêmio Nobel.
OPORTUNIDADE
O Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da
Universidade de São Paulo (USP) está com inscrições abertas para o concurso
público que tem como objetivo contratar docentes para os programas de Anatomia
Geral e Imunologia. Detalhes: www.icb.usp.br/~svacadem/concursos
e svacadem@icb.usp.br e (11) 3091-7395.
CONGRESSO BRASILEIRO DE CELULA-TRONCO
A
Associação Brasileira de Terapia Celular e a Sociedade Internacional de
Pesquisa com Células-Tronco realizarão, de 3 a 6 de outubro, em São Paulo, o 7º
Congresso Brasileiro de Célula-Tronco e Terapia Celular. Detalhes: www.stemcells2012.com.br/index.asp
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